quarta-feira, 30 de julho de 2014

Amanhã

                                        

Acordou bem cedo, escovou os dentes, sorriu para o espelho e disse: hoje o dia vai ser incrível!
Aline estava acostumada com a rotina e ontem, após horas chorando assistindo ao Diário de Bridget Jones, resolveu mudar de vida. Sabe aquele entusiasmo que faz você querer levantar no dia seguinte, fazer as sobrancelhas que não cuida há muito tempo, pintar o cabelo, entrar na dieta e perder aqueles 15 quilos que a falta de tempo te deu?

Aline está desempregada há 4 dias e acha que já superou o baque. E claro, foi sua queridíssima amiga de todas as horas, Bridget, que a ajudou a ir de encontro à felicidade. Ela estava decidida, com certeza.
Colocou a roupa que lhe cai melhor, pintou os olhos, apertou as bochechas porque não tinha mais blush, afinal, faz tempo que ela não se arrumava. Todos os dias acordava em cima da hora, vestia o que vinha na frente, se estava limpo já servia. Aqueles quilos à mais a incomodavam e nada parecia ficar bom, então pra quê se preocupar?

Mas hoje não. Antes de sair resolveu ligar o computador e procurar o endereço de um bom salão de beleza. Entrou no site de buscas e enquanto procurava resolveu entrar no Facebook, no Twitter e ver aquele blog legal. Quatro horas depois a página de pesquisa ainda não havia sido visitada e ela já estava vendo vídeos de animais graciosos fazendo coisas de ser humano.

Foi ficando tarde, escureceu e Aline nem reparou. Bateu aquela tristeza, afinal, já se foram quatro barras de chocolate, um pote pequeno de sorvete e o lanche que pedira pelo telefone parecia ter sido pouco para a fome de Aline.
Aline tinha muita fome, sempre. Menos fome de vida e esse era o problema.
Ela dormiu no sofá.

No dia seguinte tinha dor nas costas, os cabelos estavam totalmente emaranhados e parecia que ela mal conseguiria se levantar. Foi ao banheiro, escovou os dentes, olhou para si mesma e pensou: hoje o dia vai ser diferente.

Prendeu o cabelo em rabo de cavalo malfeito, escolheu uma blusa, o restante não interessava nada ficaria bom mesmo. Aline ia para o computador, pensou por um minuto, sentou no sofá e ficou olhando para o nada. Se saísse iria pra onde mesmo? A ideia do salão parecia boa, mas tudo anda tão caro que não valeria a pena gastar tanto dinheiro, não tinha mais emprego. Resolveu sair sem uma direção exata. Pegou o celular, colocou no bolso e levou o suficiente parara comer algo se precisasse.

Aline saiu, por um momento estava feliz, mas achou tudo sem graça. Preferia ver o mundo através de uma tela. Sentiu o celular vibrar e resolveu olhar a notificação. Alguém havia curtido o vídeo de ontem, do cachorrinho dançando em duas patinhas. Continuou olhando para a tela. Nem percebeu que estava andando. Mário também não percebeu Aline andando no meio da rua, ele tinha acabado de receber uma foto no Whatsapp e se distraiu um segundo.

Aline levou um tempo para perceber o que estava acontecendo. Quanta gente curiosa!

- Pobre não pode ver um acidente. - comentou consigo.

E fingindo não querer nada esticou o pescoço para olhar o motivo da aglomeração. Foi então que percebeu que estava vendo a si mesma, caída no chão, com os braços abertos, uma poça de sangue e um pouco pálida. As pessoas diziam muitas coisas:

- Tão jovem... estão tentando ligar para alguém, mas parece que a moça é sozinha... com esse trânsito que o Samu não chega mesmo, pobrezinha não tem chance!

E de repente Aline viu o mundo girar. Mário estava sentado na calçada com as mãos nos olhos e o colo molhado de lágrimas. Respirava rápido e parecia muito atordoado. Por um segundo Aline sentiu raiva, só podia ser ele o culpado de sua morte prematura. Tinha tanto o que viver, tanta coisa para fazer ainda.

Mas então Aline percebeu que realmente tinha muita coisa pra fazer, pra viver, mas nunca, em seus 28 anos, havia feito nada. Era sempre amanhã, depois e etc. Como ela poderia adivinhar que a morte lhe encontraria tão cedo? Que o amanhã não chegaria? A verdade é que mesmo que o amanhã chegasse por 100 anos, para Aline não faria diferença alguma. Ela poderia ser imortal que nunca viveria tudo o que deveria. E então se conformou.

Resolveu continuar do lado de seu corpo, assim não ficaria sozinha, não dessa vez. Deitou-se em cima do próprio corpo e afundou. Ficou tudo frio e escuro. Abriu os olhos e a luz nunca foi tão branca e tão desconcertante. Seu corpo doía muito e todos aplaudiam. De canto de olho pode ver Mário correndo em sua direção e chorando ainda mais enquanto sorria. Ele se ajoelhou ao seu lado, tocou seu rosto e pediu perdão. Disse que estaria ao seu lado e que a acompanharia quando a ambulância chegasse.

Mário sabia o que era ser sozinho e não poderia deixar Aline ali naquele frio sem ninguém, ainda mais depois do que havia causado.

Acontece que a vida tem dessas. Aline teve que perder a vida para ganha-la novamente, Mário teve que tirar uma vida para não ficar mais sozinho.

Tudo indicava a tragédia e quantos por aí não tem essa sorte?


Juntos, Aline e Mário, foram aprendendo como é que se vivia os dias. Depois de 364 dias muito bem vividos ela fez as malas e se mudou para a casa dele. Na manhã seguinte, era o grande dia, exatamente um ano após ter tido uma segunda chance, Aline e Mário viveram todos os amanhãs, até o último de suas vidas. 

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